Com o lema “Agroecologia na Boca do Povo”, o 12º CBA teve mais de 3 mil trabalhos científicos, promoveu debates, festivais de arte e uma feira na região central da cidade do Rio de Janeiro
O encerramento do 12º Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA) contou com a potência da voz da liderança indígena Ailton Krenak. “A agroecologia tinha que acontecer em escala planetária”, afirmou o ambientalista e escritor recém-eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL).
Com quatro dias de programação intensa, o 12º CBA recebeu, de 20 a 23 de novembro, no Rio de Janeiro, cerca de 10 mil pessoas, sendo 5,5 mil inscritas no evento e outras que prestigiaram as atividades.
“Foi um Congresso muito mobilizador. O objetivo era exatamente esse: popularizar a ideia de que a agroecologia é uma emergência e, para isso, a gente precisa da força e da compreensão mais ampla na sociedade brasileira”, avaliou Paulo Petersen, da comissão organizadora do Congresso, que foi promovido pela Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e parceiros, como universidades, órgãos públicos, movimentos e organizações sociais.
Foram 19 diferentes espaços – entre praças, salas de cinema, centros culturais e universidades públicas – que abrigaram os debates relacionados a 16 eixos temáticos que atravessam a agroecologia.
O som de berimbau do Aluandê Capoeira Angola convidou o público para a arena da Fundição Progresso onde uma multidão atenta vibrava com as palavras de Krenak na plenária de encerramento do CBA. “Há quanto tempo não reunimos tanta gente para um assunto comum, que é cuidar da nossa mãe, a Terra”, disse Ailton, ao subir ao palco.
O ativista indígena fez a defesa de políticas públicas que promovam reais transformações sociais e ambientais. “Se for política pública, obrigatoriamente tem que ser sistêmica”, comentou, lembrando a importância da atual retomada de espaços de participação social, como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama).
“O governo está em dívida com esses povos, indígenas e quilombolas, que dependem de campanhas de caridade contra a fome. Exigimos respeito, dignidade. Entregar cesta básica não é política pública, política pública é entregar terra para o povo fazer floresta”, acrescentou.
Mais do que um evento, o CBA é a culminância de movimentos diversos
A carta política do 12º CBA, chamada Carta Carioca, será lançada em breve pela ABA, contando com as colaborações dos Barracões de Saberes que aconteceram ao longo do Congresso.
A versão prévia do documento, lida na plenária final por Thaís Souza e André Campos Búrigo, apresentou o Congresso como um processo, um movimento, não apenas como um evento. Lembrou ainda que sua construção foi feita de forma ampla e descentralizada.
Houve representações de todos os 27 estados brasileiros e de 20 países da América Latina, da África e da Europa. “Nossa força está em nossa diversidade e em nossa capacidade de auto-organização”, destaca um trecho do documento.
Diante de um país de desigualdades, a carta pontuou que é necessário o enfrentamento à fome, às desigualdades de gênero, ao racismo, à LGBTQIA+fobia, às devastações ambientais e às injustiças climáticas.
Congresso promove uma ciência engajada em transformar as estruturas geradoras de mazelas
Por meio de diferentes metodologias, o 12º CBA criou ambientes para a “expressão da ciência do povo”, reunindo a apresentação de 3 mil trabalhos científicos e garantindo a participação de mais de 1600 agricultoras e agricultores familiares, representantes de povos indígenas, comunidades quilombolas e de povos e comunidades tradicionais.
“Esse é um papel de uma ciência engajada em movimentos de transformação das estruturas geradoras dessas mazelas”, afirma a Carta. Entre as reivindicações, está a construção no Brasil de um amplo programa de educação em agroecologia, da educação infantil ao ensino superior.
A Carta Carioca também destacou que o alimento não pode ser visto como mercadoria, uma vez que a alimentação é um direito humano. “Denunciamos como as estruturas de poder, orientadas à produção de commodities, é a principal responsável pela manutenção da sociedade injusta e brutal que herdamos de nosso passado colonial. Na segunda década do século 21, seguimos assistindo à expulsão dos povos indígenas, das comunidades quilombolas, dos povos e comunidades tradicionais, comunidades camponesas, para a expansão das monoculturas parte voltadas para a exportação”, ressalta outro trecho da carta.
Conhecimentos tradicionais no enfrentamento ao racismo
Representando o Ministério da Igualdade Racial, Ronaldo dos Santos também participou da cerimônia. “A agroecologia brasileira é preta, o campesinato brasileiro é preto, e o IBGE está aí para provar isso. Somos 1 milhão e 300 mil quilombolas, que mantemos as nossas roças, nossas ervas, nossos conhecimentos, tudo que compõem essa ciência que chamamos de agroecologia”, pontuou o Secretário de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e Ciganos.
Mencionando a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 28), que acontece entre 30 de novembro e 12 de dezembro em Dubai, Ronaldo trouxe à tona o racismo ambiental.
“Se nossos territórios tradicionais, se o que os nossos mais velhos falam há anos, se isso não for assimilado na agenda global, teremos tempos ainda piores. Os menos responsáveis pelo colapso global são os mais afetados. Isso é racismo ambiental e deve ser enfrentado. O CBA é um espaço potente para falar sobre essas coisas, para pensar o futuro do país, o futuro do planeta”, analisou.
Povos indígenas querem construir Encontro Nacional de Agroecologia Indígena em 2024
“Pataxó pede licença, Pataxó pede licença. Nós não podemos destruir as coisas da nossa natureza”, cantou e dançou um grupo do povo Pataxó que subiu à Arena Fundição, um dos palcos deste 12º CBA.
Um grito de “Sem demarcação não tem agroecologia!”, acompanhado de aplausos, chocalhos e tambores, marcou o início da leitura da carta elaborada pelo Grupo de Trabalho (GT) Povos Indígenas da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), lida por Gilmara Terena, Camila Atikum e Thaís Terena.
“Os processos históricos de construção da agroecologia, enquanto movimento no Brasil, são baseados em saberes e práticas de manejo tradicionais dos povos originários. Ao mesmo tempo, a nossa presença foi incipiente nesses processos de construção. (…) Esse projeto colonialista, que remonta do século dezesseis, continua a fazer investidas sistemáticas de extermínio a nós povos indígenas, evidenciadas pelos projetos de leis que tramitam nas três instâncias do Estado Brasileiro”, destaca o documento, articulado por representantes de 48 povos indígenas.
O grupo solicitou a criação de chamadas públicas para associações indígenas e normativas para uma Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) que leve em conta os saberes tradicionais, além de acesso aos programas governamentais de aquisição de alimentos.
Entre outros pontos, pediu a realização do primeiro Encontro Nacional de Agroecologia Indígena em 2024, para promover intercâmbios e trocas de experiências entre os diferentes povos indígenas envolvidos em experiências agroecológicas.
Após o encerramento da leitura da carta, o grupo se juntou em roda ao público da Arena, finalizando de forma coletiva e emocionante esse momento da Plenária, entoando em coro: “A nossa força vem da mata e juntos somos um”.
Cozinha: o coração do 12º CBA
Em seguida, subiram ao palco as cozinheiras da reforma agrária do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) de Minas Gerais, que alimentaram as/os participantes do CBA.
Patrícia Brito, representante da Cozinha das Tradições, falou sobre o processo de percorrer oito diferentes comunidades do estado do Rio de Janeiro para o mapeamento dos saberes ancestrais sobre a alimentação e, assim, possibilitar a construção de uma cozinha coletiva.
“Não existe agroecologia sem reforma agrária, sem os povos e as comunidades tradicionais terem o que comer”, afirmou, clamando por um empretecimento do Congresso.
Em um rompante, a energia elétrica da Arena Fundição caiu, mas o discurso seguiu em jogral: “A universidade, conjuntamente com o CBA, com a ABA, devem assumir a responsabilidade política de permanecer todo esse trabalho deixado pelos indígenas e pelos quilombolas. Nós só vamos conseguir se todo o povo africano, se todas as comunidades tradicionais tiverem voz e ação dentro desse legado”. Regina Barros, sua mãe e uma das responsáveis pela cozinha, continuou, com toda a arena reproduzindo cada palavra em seguida: “É com muita alegria que eu vejo que a natureza responde e que nos obriga, e obriga a cada um e a cada uma de vocês, a repetir o que nós estamos sentindo”.
A luz retornou, mas, sem que o microfone funcionasse, o jogral continuou. “Nós assumimos um compromisso de manter o legado de uma comida de verdade, que só vem de um lugar: da própria terra. Por isso, respeitem quem pode lidar com ela. Sem marco temporal, porque o tempo é divindade”, finalizou.
Sementes e mudas são distribuídas com abraços e chuva
Para encerrar a Plenária, foram distribuídos saquinhos de muvucas (misturas) de sementes crioulas e nativas, e as/os participantes também puderam levar para casa as mudas dos “Encantados”, para que cada um/a possa replantar em sua terra e fazer renascer em outros territórios as lembranças de vidas com propósitos agroecológicos de quem já se foi.
Com abraços saudosos, o público se deslocou em cortejo para os Arcos da Lapa, que foram ocupados por um som de esperança com a chuva regando e fazendo florescer tantas sementes plantadas no 12º CBA.
Texto: Gilka Resende, Luana Abreu e Paula Vianna
Fotos: Tina Diores, Ísis Medeiros e Luana Abreu