Congresso Brasileiro de Agroecologia promove uma ciência construída com os povos

O CBA evidenciou a importância da agroecologia na construção de uma ciência “em movimento”, popular, pluricultural e contra-hegemônica

Uma das conferências realizadas no CBA, na Arena da Fundição Progresso (foto: divulgação/CBA)

Mais de 2.300 trabalhos apresentados em 300 Tapiris de Saberes, além de dezenas de debates, conferências, espaços e apresentações em que se semeou uma ciência construída por vários sujeitos. Uma prática que se coloca em diálogo com diversos saberes para enfrentar o que a cientista e ativista Vandana Shiva chamou de “monocultura do pensamento”. 

A 12ª edição do Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA) terminou no dia 23/11 e deixou o seu legado. Foi um marco histórico na retomada e convergência de pautas, alianças e processos que constroem o pensamento e o conhecimento agroecológico no país. Após seis anos de retrocessos políticos, sociais e ambientais, o CBA segue produzindo frutos para muito além dos quatro dias do evento.

Plantando o compromisso de popularizar a agroecologia em um momento liminar de agravamento das crises socioambientais, o Congresso firmou-se como espaço crítico de comprometimento da ciência com a justiça social e a construção coletiva, plural e amorosa do conhecimento.

Foi um momento de profunda simbologia e potência, onde múltiplos conhecimentos se relacionam e realizam, ao mesmo tempo, duas importantes ações. A primeira é a resistência a processos hegemonizantes, mecanicistas e antidemocráticos. A segunda, a virada para uma transição difícil, porém possível, dos sistemas agroalimentares do planeta.

No CBA, Tapiris de Saberes compartilham trabalhos científicos em diferentes formatos

Nos Tapiris de Saberes, mais de 2 mil trabalhos de diferentes formatos foram divulgados entre os participantes do 12º CBA nas manhãs de 21, 22 e 23 de novembro (foto: Divulgação/CBA)

No centro desta dimensão estiveram os Tapiris de Saberes, nos quais os fazeres da ciência da agroecologia nos territórios e na academia foram compartilhados em uma pluralidade de formatos, linguagens e  metodologias.

Helena Lopes, da coordenação do 12ª CBA e da Comissão Ciências e Saberes, conta que essa proposta de diálogo de conhecimentos e formas de produzi-los relaciona-se com o esforço de garantir a inclusão da diversidade de vozes que constroem a agroecologia.

“A gente entende que, na agroecologia, não existe essa separação entre os conhecimentos que são produzidos na academia, nos territórios e na prática cotidiana. Os Tapiris são uma combinação de trabalhos de linguagem acadêmica e popular. Sendo que esses conhecimentos não devem ser lidos como opostos, ao contrário, a universidade precisa ser cada vez mais popular, ao mesmo tempo que os conhecimentos produzidos na academia precisam estar integrados à solução de questões urgentes que estão colocadas à sociedade.”

É nesse sentido que os Tapiris exploraram linguagens distintas. Incluindo, por exemplo, os vídeos: “nem sempre é fácil para agricultoras e agricultores pararem suas atividades e escreverem, mas contar por meio de lentes, pode ser. Os vídeos também são uma forma super importante de contar as experiências de agroecologia, relatar os conhecimentos construídos e as ciências praticadas no cotidiano”, explica Helena.

Trabalhos agroecológicos de diferentes partes do Brasil encontraram-se na Lapa, centro do Rio

O movimento foi intenso na entrada do prédio que sediou os Tapiris de Saberes, no Centro do Rio de Janeiro (RJ) (foto: Divulgação/CBA)

Os 16 eixos temáticos dos Tapiris, que dialogaram intensamente entre si, exerceram uma função organizativa das atividades. Foram preenchidos por relatos técnicos e de experiências, resultados de pesquisas e conclusões de ensaios teóricos, entre outras produções diversas.

Diversidade que também esteve presente dentre quem apresentou os trabalhos: pesquisadoras/es, estudantes, agricultoras/es, extensionistas e outras atrizes e atores que formam a rica ecologia do pensamento agroecológico brasileiro e latino-americano.

Os trabalhos são de todas as regiões do Brasil, trazendo a dimensão da diversidade necessária para a construção da agroecologia. Isso inclui a variedade de sujeitos que a constroem desde os territórios até as instituições de ensino, pesquisa e extensão.

“Além disso, ressaltamos a conexão que esses trabalhos têm com os lugares em que são produzidos, com diferentes temáticas. Alguns dos eixos têm sido trabalhados há muito tempo pela Associação Brasileira de Agroecologia (ABA). Mas há eixos mais novos, que colocam novas reflexões pra gente e que vão permitindo que a nossa ciência seja feita sempre em processo”, conta Helena.

Dinâmica dos Tapiris reflete a natureza de cooperação da agroecologia

Na primeira manhã de apresentação dos Tapiris, uma multidão esperava na porta para acessar as 55 salas distribuídas em cinco andares do prédio (foto: Divulgação/CBA)

O espírito dos Tapiris como ambientes onde se chega junto e se aprende coletivamente pelo compartilhamento de histórias e experiências foi traduzido no “caos organizado” do primeiro dia.

Por um lado, o grande volume de pessoas que circularam pela Associação Cristão de Moços (ACM), na Lapa, na manhã de 21 de novembro, comprovou o sucesso da atividade. Por outro, também trouxe desafios em termos de organização do acesso do público às salas.

Um desafio que foi superado já no segundo dia do evento, graças ao esforço e inteligência coletiva das pessoas envolvidas na organização do Congresso e da generosidade e paciência dos/as participantes.

Nas 55 salas onde foram apresentados os trabalhos ao longo dos três dias, havia uma estrutura básica de 15 cadeiras por sala. Porém, algumas sessões de Tapiris chegaram a receber 30 pessoas. Afinal, não era raro encontrar grupos que mandaram trabalhos e vieram todos juntos apresentá-los.

“Foram momentos de profundo compartilhamento das ciências que estão sendo feitas. As pessoas se encontram para compartilhar suas experiências e ouvir as experiências dos outros. E é esse processo de troca que, metodologicamente, permite o fomento da própria ciência da agroecologia. Não é só apresentar e dizer quais são seus resultados, mas entender como é a ciência do outro e como ela permite a sua própria avançar, dar novas possibilidades, novas inspirações”, analisa Helena.

Feira de livros também chamou a atenção de quem passava pela entrada do prédio onde foram realizados os Tapiris de Saberes (foto: Divulgação/CBA)

A circulação de pessoas em busca de suas salas de apresentação ou de gente trocando ideias nos corredores da ACM resumia perfeitamente esse clima. Uma maioria de jovens revelava que as juventudes, em seus territórios e no fazer das universidades e instituições públicas de ensino, pesquisa e extensão, são uma das caras mais importantes do esperançar agroecológico.

Mas o burburinho das prosas e do passar de gente acabava assim que as portas das salas se fechavam. Fosse por slide, vídeo, prosa ou materiais dos mais diversos, o momento do compartilhamento de saberes era imediatamente regado por uma solenidade serena entre todas as pessoas participantes.

Juventudes estiveram presentes em peso nos Tapiris de Saberes

Algumas salas de apresentações ficaram repletas de pessoas, de cores, de ideias e de compartilhamentos (foto: Divulgação/CBA)

No último Tapiri do eixo Construção do Conhecimento (foto), os mais de 10 trabalhos apresentados foram alinhavados por três perguntas norteadoras: “Que agroecologia estamos construindo? Com quem fazemos essa construção? Como a fazemos?”.

Mais uma vez, observou-se uma participação majoritária de juventudes presentes nas universidades, coletivos e movimentos agroecológicos. Nathalia Carelli, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), estava entre elas.

O trabalho dela, intitulado “Epistemologia da natureza filosófica e a agroecologia”, propõe uma crítica ao pensamento de vários pesquisadores euro centrados e a formação de “novas concepções do pensamento humano”.

Nele, o paradigma da filosofia clássica se encontra com as concepções de conhecimento percorridas pelos sentidos, abrindo espaço para uma dimensão de consciência sensível e imediata (outrora abandonada pela ciência clássica) na construção do conhecimento agroecológico.

A filosofia e seu papel na ciência, que implicou a episteme para que houvesse rupturas com pressupostos cognitivos anteriores, são algumas das ideias percorridas por Carelli em seu trabalho.

Trabalhos da agroecologia reconhecem outras epistemologias e formas de viver

A diversidade deu o tom dos trabalhos compartilhados durante as três manhãs de Tapiris de Saberes (foto: Divulgação/CBA)

Juliana Alvarenga Prado, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, trouxe para a roda o ensaio teórico “A noção de construção do conhecimento agroecológico (CCA) no âmbito da Agroecologia”.

O trabalho delineia a concepção de conhecimento agroecológico com base em análise das produções e bibliografias utilizadas pelos grupos de trabalho da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

O trabalho argumenta que a construção do conhecimento agroecológico é “fundamental para a estruturação de processos de transição agroecológica que superem, de fato, as lógicas hegemônicas da agricultura capitalista moderna”.

Uma estruturação que acontece “a partir da construção de relações em campo que sejam horizontais, emancipatórias e que considerem em igual medida a pluralidade de saberes das populações agricultoras”.

Em sua apresentação, Juliana Prado aprofundou: “o capitalismo agrário causou a divisão entre cultura e conhecimento, culminando com a modernização agrícola, também chamada de Revolução Verde. No fazer científico ‘moderno’ e hegemônico, a divisão entre sujeito e objeto é considerada condição para a construção desse conhecimento.”

Enquanto campo acadêmico, a agroecologia vem propondo uma quebra desse paradigma por meio do diálogo entre os saberes não-hegemônicos dos sistemas agroalimentares. “O confronto da ideia de monocultura de saberes por meio de uma ‘ecologia de saberes’ se dá, entre outras coisas, através de metodologias participativas que facilitam a construção horizontal do conhecimento”, conclui a pesquisadora.

Estudantes relatam experiência em promover evento sobre agroecologia na UFRJ

Reverberando a ideia de que o conhecimento agroecológico contra-hegemônico se constrói no diálogo, na diversidade e na horizontalidade, Luísa Albuquerque Ferrer Pinheiro apresentou o trabalho “VI Semana de Agroecologia da UFRJ fortalecendo relações entre sujeitos, territórios e universidade”.

No relato de experiência sobre a Semana de Agroecologia que seu grupo, a Rede de Agroecologia (ReAU), realizou na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o grupo de estudantes sentiu o desejo de levar um contraponto aos discursos do agronegócio a partir do contexto da volta do Brasil ao Mapa da Fome.

A ideia era mostrar que quem bota comida na mesa das pessoas é a agricultura familiar e as experiências agroecológicas nos territórios. Assim nasceu a Semana de Agroecologia, com o desafio de levar para dentro do espaço universitário o protagonismo de quem faz a agroecologia por meio de debates, rodas de conversa e oficinas.

O coletivo da ReAU também apostou na arte como meio de comunicação agroecológica relevante, a partir do grafitti, da música e da poesia, entre outras manifestações.

“A Semana foi pensada de maneira a proporcionar espaços horizontais onde academia e sociedade pudessem trocar experiências e conhecimentos, além de levar questões de classe, raça e gênero para o centro do debate sobre agroecologia”, conclui Luísa.

Maior número de Tapiris foi sobre Manejo de Agroecossistemas

(foto: Divulgação/CBA)

O elevado número de trabalhos submetidos ao eixo temático Manejo de Agroecossistemas não é uma novidade do CBA. “Já faz algum tempo que quase metade de todos os trabalhos submetidos são desse eixo – o que não nos surpreende”, pondera Eduardo Guatimosim, um dos coordenadores do eixo Manejo de Agroecossistemas.

Segundo ele, em certa medida, o manejo de agroecossistemas reúne muitas ações realizadas quando se pensa nas práticas da agroecologia. Afinal, manejar os agroecossistemas é pegar no cabo da enxada, podar os sistemas agroflorestais, dar vida e melhorar a saúde dos solos, perceber os impactos da sociobiodiversidade.

Trata-se também de construir conhecimentos agroecológicos para manter sistemas agroalimentares resilientes, e contribuir para manutenção, conservação e qualidade da vida das pessoas, das plantas, dos animais.

“Mas é claro que esse eixo sozinho não é capaz de promover o avanço necessário na construção do conhecimento e da ciência em agroecologia. Sendo uma ciência transdisciplinar e sistêmica, ela apresenta interdependência com outros eixos e temas que vão refletir e construir conhecimento sobre os modos e formas dos manejos”,  salienta Clovis José Fernandes de Oliveira Jr que integra o Grupo de Trabalho (GT) Manejo de Agroecossistemas da ABA.

Além dele, Luana de Pádua Soares e Figueiredo, que também faz parte do grupo, pondera: “o eixo Manejo de Agroecossistemas caracteriza-se pela construção do conhecimento no que se refere a base do manejo dos solos, no manejo fitossanitário, na construção de desenhos e consórcios, entre outros aspectos da produção, podendo ser definido como a atividade cíclica da produção agroecológica”.

Congresso Brasileiro de Agroecologia é um espaço de convergência e construção da ciência 

Estrutura em geodésia foi montada com algumas das bandeiras do CBA no Passeio Público, um dos espaços do Congresso realizado na Lapa, Centro do Rio de Janeiro (RJ) (foto: Divulgaçãio/CBA)

Quando ouvi o astrônomo erudito,
Quando as provas, os números foram enfileirados diante de mim,
Quando me foram mostrados os mapas e diagramas a somar, dividir e medir,
Quando, sentado, ouvia o astrônomo muito aplaudido, na sala de conferências,
Senti-me logo inexplicavelmente cansado e enfermo,
Até que me levantei e saí, parecendo sem rumo
No ar úmido e místico da noite, e repetidas vezes
Olhei em perfeito silêncio para as estrelas.

Durante os quatro dias de Congresso, a proposta de rompimento com o paradigma científico hegemônico, mecanicista, monocultor e, muitas vezes, (neo)colonizador, esteve presente nos formatos dos 2.326 trabalhos apresentados nos Tapiris de Saberes. Sobretudo nos relatos de experiências levados por representantes da agricultura familiar, indígenas, quilombolas, outros povos tradicionais e movimentos sociais.

Mas a ideia de que a agroecologia precisa estar na boca no povo brotou ramos em muitos outros espaços do Congresso. Afinal, agroecologia não deve estar presente somente na forma de acesso à comida saudável, soberana e culturalmente ressonante.

Também não é só no reconhecimento daquelas e daqueles que, efetivamente, produzem e promovem essa comida, mas também por meio da circulação e democratização de conhecimentos científicos nascidos da “prosa” entre o popular e o acadêmico.

Dos barracões de saberes, locais fixos onde foram realizadas as oficinas autogestionadas, até as conferências simultâneas, todo o Congresso foi atravessado pelos 16 temas norteadores e pelo debate da ciência que queremos.

Terreiro das Inovações Camponesas trouxe protótipos de ideias que impulsionam o movimento agroecológico

12º CBA
Participantes do 12º CBA fazem roda de conversa no Terreiro de Inovações Camponesas, na Fundição Progresso (foto: Alisson Gomes/CBA)

Um dos pontos focais de maior destaque, neste sentido, foi o Terreiro das Inovações Camponesas. O espaço funcionou no Teatro de Anônimo, dentro da Fundição Progresso, entre os dias 21 e 23 de novembro.

Ao lado de tecnologias para o manejo agroecológico das roças e de engenhocas geniais para o melhor beneficiamento dos alimentos, entre outras criações das agricultoras e agricultores, conviveram experiências de pura beleza, criatividade e engenhosidade.

Tais como a da caixa-maquete de Enny, que apresenta a réplica de um roçado de milho do assentamento Arcanjo, em Soledade (PB), onde está em curso um trabalho de “transição” às sementes crioulas.

Ou das miniaturas da Agroflorestinha, criada pelo jovem agrônomo Jefferson Motta, que ensinam as crianças a “plantar comida e regenerar a floresta” por meio de brinquedos que promovem a compreensão da relação de sucessão e consórcio entre plantas em um sistema agroflorestal. 

O Terreiro das Inovações Camponesas consolidou-se como um espaço onde a natureza inter-relacional, aberta e diversa da agroecologia se fez viva por meio das diferentes convivências. Entre elas, a inventividade das comunidades quilombolas, rurais e indígenas, com o conhecimento técnico-científico acadêmico levado por estudiosos das soluções agroecológicas. 

”A agroecologia não é uma ciência acabada, é uma ciência a ser feita. Isso é maravilhoso, porque a gente sempre fala que a agroecologia é ciência, é prática e é movimento. E o que o CBA demonstra pra gente é que não tem ciência sem prática, não tem prática sem ciência, e a própria parte de “movimento” também é fazer ciência, também é fazer prática. Essa tríade está completamente conectada. São palavras que vivem quase uma dentro da outra”, conclui Helena Lopes, da Comissão Ciências e Saberes.

Texto: Fernanda Favaro
Fotos: Isis Medeiros / Alisson Gomes / Tina Diores / Juliana Chalita

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