Com presença de mais de 5 mil participantes, encontro celebrou a construção da agroecologia no país e a retomada de espaços e políticas públicas estruturantes; saiba como foi o dia de abertura desse que é o maior Congresso de Agroecologia da América Latina
O lema “Agroecologia na Boca do Povo” ecoou ontem (20), Dia da Consciência Negra, por todo bairro da Lapa, na cidade do Rio de Janeiro: começou o 12º Congresso Brasileiro de Agroecologia (CBA). Quatro anos desde a última edição, o encontro teve início com uma intensa movimentação de pessoas vindas de todo o Brasil e de outros 20 países, que foram chegando à Fundição Progresso ao longo do dia e se somando às atividades de abertura com seus saberes e sabores.
Na entrada da Fundição, logo pela manhã, já era possível ver o Memorial das Pessoas Encantadas e o espaço onde a grande Muvuca de Sementes estava sendo construída em meio aos imensos e delicados pássaros de bambu.
Depois da chegança, veio a festa de abertura
Na parte da tarde, ao mesmo tempo em que a Plenária das Mulheres terminava, o cortejo do Bloco da Terreirada vinha chegando com suas cores, pernas de pau e estandartes ao saguão central da Fundição, formando uma grande apoteose de gente, planta, semente e alegria.
No espaço da muvuca, crianças se divertiam com as sementes enquanto o refrão de Anunciação, de Alceu Valença, entoado por centenas de pessoas, convocava corações e mentes para a segunda etapa do dia: a Conferência de Abertura e a Mesa com autoridades.
Junto com a Plenária das Mulheres, os encontros da tarde debateram a relação da agroecologia com a luta antirracista e antimachista; o combate à fome com comida saudável e pela via da justiça social; e a retomada dos processos democráticos de construção das políticas públicas de agroecologia após seis anos de desmontes, entre outros assuntos.
Plenária das Mulheres abre os debates do CBA com a potência e a mística feminista
Das entranhas eu sou encruzilhadas
Boca do mundo Marielle desbrava
Misericórdia em volta revolta.
A bala do racismo, do capitalismo,
Do sexismo não nos mata.
Meu sangue quando jorra, molha e nasce muitas de mim
Ori o tempo crava Kawô.
Das entranhas eu sou encruzilhadas
Chibata de ferro meu corpo de água.
De mulheres negras lésbicas faveladas
Das entranhas eu sou encruzilhadas
(Deise Fatuma – no livro Interseccionalidade, de Carla Akotirene)
Os versos acima, declamados na abertura da Plenária das Mulheres, trouxeram a mística desta que foi uma plenária histórica, feita por mulheres pretas e indígenas. A escolha simbolizou, ao mesmo tempo, a presença majoritária dessas mulheres nas frentes de agroecologia e as enormes opressões estruturais de raça, gênero, geográficas e sociais que elas ainda vivenciam dentro e fora do movimento agroecológico brasileiro.
Entre abraços e gritos de “sem feminismo não há agroecologia” e ”com racismo não há agroecologia”, as participantes levaram a um auditório lotado reflexões emergentes como a invisibilidade do trabalho de cuidado e de como ele afeta todas as dimensões da vida das mulheres, inclusive as oportunidades de participação política.
“Um exemplo disso é que muitas trabalhadoras que estão aqui tiveram que deixar tudo prontinho em casa para poder ficar 2, 3 dias participando do Congresso”, afirmou Roselita Vitor da Costa, assentada da reforma agrária e coordenadora do Polo da Borborema, na Paraíba, uma das participantes da mesa.
O machismo estrutural, materializado nas relações sociais patriarcais que sustentam essa lógica, também foi lembrado. “O trabalho das mulheres, na maioria dos lugares é, invisível, não só na agroecologia. É impossível mudar a sociedade sem pensar nisso”, destacou Aline Lima, do GT de Mulheres da Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro.
Histórias de resistência e transformação trazem o chamado para a escuta radical
O papel da resistência feminista, antirracista e anticolonial na construção da agroecologia também esteve presente na fala de Maria José, a Mazé, coordenadora da Marcha das Margaridas. “A fome é uma violência estrutural; quando identificamos os donos do ‘agro’ e do ‘hidro’ (negócio), identificamos o racismo e o machismo estruturais que produzem a fome”, disse.
Ecoando a questão das forças econômicas que sustentam as violências do sistema racista e patriarcal, Roselita trouxe um depoimento sensível sobre a destruição que os projetos de energia “renovável” vêm levando à sua comunidade.
Lá no Polo da Borborema (PB), o acesso à água, que havia avançado muito com a construção de meio milhão de cisternas, vem sendo ameaçado pela proliferação de unidades eólicas que provocam danos aos reservatórios de água das famílias. “As cisternas estão rachadas e suas tampas afundadas, e isso é só um dos problemas que estamos enfrentando”, afirmou Roselita.
Outra participante que também lembrou de como o patriarcado incide sobre o Território AgroExtrativista do Pirocaba, no Amazonas, foi Daniela Araújo, do GT de Mulheres da ANA. “Vivo em um território ameaçado sobre o qual se diz que não há nada ou ninguém vivendo ali”.
Emocionada, ela aproveitou o momento para celebrar a vitória das mulheres da sua comunidade sobre um projeto de construção de um porto que levaria degradação e destruição para o local.
“Nós, mulheres indígenas, construímos resistência a partir do lugar onde estamos; quando levamos meses para produzir um óleo de andiroba, tão importante para nós, ou uma biojoia, nós estamos resistindo”, declarou.
Denúncias e anúncios contextualizam a luta feminista na agroecologia
Às vozes de Mazé, Roselita e Daniela se somaram a de Iracema Pankakaru, da Cozinha das Tradições do CBA. Iracema fez um depoimento sensível sobre uma violência que sofreu em 2012 e que a marcou profundamente, trazendo consequências para sua saúde até hoje. Sua fala, porém, veio junto de uma afirmação potente: “Fomos nós, negras e indígenas, quem construímos o Brasil”.
A reafirmação da existência, da vida e dos conhecimentos das mulheres das favelas, campos, águas e florestas também foi tema da fala de Isabel Santos, quilombola, professora e pesquisadora da UFBA.
Isabel relembrou a violência racista silenciadora sofrida por mãe Bernadete e seu filho Binho do Quilombo, brutalmente assassinados pelo tráfico de drogas em Salvador (BA). Uma violência que está presente em todos os âmbitos, inclusive em uma ciência hegemônica que nega e apaga os conhecimentos tradicionais e religiosos, sobretudo o das mulheres, enquanto tenta impor seu modelo.
Como resposta, Isabel defende um exercício de escuta radical com/dos movimentos e coletivos de mulheres que estão, em seus quintais, terreiros e roçados, tecendo a agroecologia popular. “É preciso também trazer essas mulheres para os espaços, incentivar trabalhos e eventos em agroecologia feitos por elas”, completou.
Conferência de abertura debate a popularização da agroecologia para combater desigualdades sociais
Às 18h, ocorreu a Conferência de Abertura do 12º CBA, um dos grandes momentos do dia, dando início oficial aos trabalhos. A conferência começou com a leitura da Carta de Abertura e Boas Vindas, por Fernanda Savicki, presidenta da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA).
A agroecologia enquanto ciência crítica, o acesso aos bens comuns, o desmonte das instituições democráticas, a negação de direitos territoriais, a luta contra a invisibilização de saberes e memórias do povo, o feminicídio, a luta antirracista, a fome e a inseguraça alimentar e as crises ambietal e climatica, foram temas da Carta.
“Esse congresso só foi viável por conta da força coletiva de construção descentralizada em redes de solidariedade. Sem essa força militante não estaríamos aqui. E sem ela não seguiremos adiante em nossas lutas. Esperamos que o 12º CBA deixe muitos legados”, finaliza Fernanda.
A mesa de abertura teve a presença de Elisabetta Recine, do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea); Ana Santos, do Centro de Integração da Serra da Misericórdia (CEM); Beto Palmeira, do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA); e Helena Theodoro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Agroecologia é capaz de promover acesso à alimentação saudável para todo mundo
Elisabetta Recine destacou que a agroecologia não se trata apenas da produção de alimentos, “é um mecanismo capaz de modificar como a sociedade se organiza e proporcionar acesso à alimentação adequada e saudável a todos”.
O sistema alimentar hegemônico vigente transformou a comida em mercadoria e, para modificá-lo, é necessário enfrentar os desafios estruturais através da força da sociedade civil organizada. “As ações de curto prazo também são importantes, mas não resolvem os problemas estruturais. É necessário ações de longo prazo que fomentem a equidade, os direitos e a democracia”, enfatizou Elisabetta.
Na oportunidade, ela convidou a todos a participarem da 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional que acontecerá em Brasília, nos dias 11 a 13 de dezembro deste ano.
Racismo e agricultura urbana também foram destaque na Conferência de Abertura
Ana Santos, que também esteve na Plenária das Mulheres, iniciou denunciando que “a vida das mulheres pretas, indígenas e faveladas tem um grande inimigo: o racismo que nossos corpos-territórios sofrem diariamente”.
Prosseguiu abordando sobre a importância de propiciar maior visibilidade à agricultura urbana que está sendo desenvolvida, principalmente, nas favelas, a exemplo da Serra da Misericórdia no Rio de Janeiro, onde ela atua.
Ana também destacou que “trazer a agroecologia para o Centro da cidade do Rio de Janeiro é evidenciar e afirmar a força da favela e da agricultura urbana que ainda é invisibilizada nesse lugar”.
A agricultora ainda enfatizou sobre a dificuldade de legitimar o conhecimento das favelas no ambiente acadêmico. “É necessário falar da agroecologia a partir das tecnologias sociais e não apenas como um modelo acadêmico, mas um modelo que produz o Bem Viver. A prática da agroecologia é um resgate das ancestralidades.”
Cinco desafios para que a agroecologia esteja na boca do povo
Beto Palmeira trouxe cinco questões provocativas para pensar a agroecologia na boca do povo. A primeira questão suscitada foi a desmercantilização do alimento: “para a agroecologia estar na boca do povo, o alimento não pode ser mercadoria, da mesma forma que a água, a saúde e a educação não são”.
A segunda provocação é sobre o acesso aos alimentos agroecológicos, principalmente nas periferias, e, para isso, também é preciso pensar na questão do abastecimento popular, através de políticas de subsídio na produção e distribuição “para construir uma grande rede de abastecimento popular nas favelas”.
O terceiro ponto é a concentração de mercados. Hoje, dez grandes multinacionais controlam a distribuição do alimento no Brasil. “É necessário regular os grandes mercados que hoje controlam os preços dos alimentos. Se o estado brasileiro tem monopólio mínimo na saúde, na educação, por que não ter no alimento?”, questiona.
Na sequência, Beto enfatiza que “é preciso elevar a agroecologia e o abastecimento popular a uma questão de soberania nacional”. A pandemia, a guerra da Ucrânia e o massacre dos palestinos são exemplos de como a geopolítica de distribuição de alimentos no mundo pode mudar, por isso, é urgente pensar num sistema de produção e distribuição nacional pautado na agroecologia.
Por fim, sinaliza que “não tem como pensar na agroecologia na boca do povo sem pensar na organização popular. Para isso, é necessário um novo Pacto Público Popular (PPP), a fim de enfrentar a fome no Brasil, seguindo as experiências da cozinhas solidárias do MTST, MPA, MST e outras organizações, que demonstraram, sobretudo na pandemia, que sabem organizar os territórios para produzir e distribuir.
Elementos da cultura indígena e preta devem ocupar estruturas do estado
Finalizado a conferência, Helena Theodoro salientou sobre o Memorial do Quilombo dos Palmares “representando a luta de uma agroecologia que leva em consideração a ciência existente no povo brasileiro: ciência negra, indígena, que junto com a branca desenvolve a possibilidade de sobrevivência dos grupos”.
Nos quilombos havia algo interessante de ir na contramão do que o Brasil praticava à época: “Ocupavam os territórios fazendo rodízios das suas plantações e distribuíam governança e participação dos saberes africanos e indígenas que conheciam a terra, enquanto o Brasil praticava a monocultura”.
Ressaltou também a importância de se falar da conscientização da causa negra, não apenas no dia 20 de novembro, mas “incluir, efetivamente, elementos da comunidade preta e indigena, como as energias da natureza representada pelos Orixás, na estrutura do estado, universidade e escolas”.
A Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica voltou!
A culminância do primeiro dia do congresso se deu com a reinstalação da Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, a CNAPO, e a retomada do Programa Ecoforte.
Criado durante o governo Dilma Rouseff, o Ecoforte é um dos mais importantes instrumentos de fortalecimento da produção agroecológica e volta com novas fontes de recursos.
O momento foi celebrado durante a mesa de encerramento, que reuniu ministros e gestores de diversos órgãos públicos federais envolvidos com a agroecologia e o abastecimento alimentar no país.
Participaram o ministro Paulo Teixeira, do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), o ministro Márcio Macêdo, da Secretaria-Geral da Presidência, Tereza Campello, do BNDES, Kleytton Guimarães, da Fundação Banco do Brasil, entre outros representantes de governo e entidades.
“Entregaremos em março a política nacional de agroecologia e agricultura orgânica. Hoje volta o Ecoforte, e o Banco do Brasil vai fazer uma contrapartida aos recursos do BNDES para o programa. O MDA também lançou o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) com juros negativos para a agroecologia e exigência para que os bancos retirem a burocracia para aqueles que forem produzir no sistema agroecológico.”, informou no encontro o ministro Paulo Teixeira.
O Congresso Brasileiro de Agroecologia continua até o dia 23 de novembro, quinta-feira, com eventos, debates e apresentações sobre agroecologia em mais de 18 espaços na Lapa, no Rio de Janeiro. Ainda dá tempo de participar dos eventos abertos ao público. Confira a programação completa aqui.
Texto: Débora Tamires e Fernanda Favaro.